Jornal SBC 184 | Novembro 2017

Van Gogh, Dr. Gachet e a Digitalis Vincent van Gogh é uma das personalidades mais in- trigantes da história da arte. Nascido em 1853, na Ho- landa, foi comerciante e pastor, mas encontrou na pin- tura sua verdadeira vocação, apesar de, em vida, só ter conseguido vender um único quadro, O Vinhedo Ver- melho , em 1890, ano de sua morte. Conviveu e recebeu influências dos impressionistas Émile Bernard, Toulou- se-Lautrec, Paul Signac, Edgar Degas e, especialmen- te, Paul Gauguin. Foi após uma violenta discussão com Gauguin, que, arrependido, cortou a própria orelha com uma navalha, dando início a uma série de internações em hospitais e sanatórios. Centenas de médicos e pesquisadores estabelece- ram diferentes diagnósticos médicos para van Gogh, como depressão, distúrbio bipolar, sífilis, epilepsia do lobo temporal, etilismo e intoxicações - por chumbo, Artemisia (contida no absin- to) e Digitalis - substâncias que, supostamente, podem ter causado xantopsia, ten- dência para ver em amare- lo, com possíveis influên- cias em sua obra. Em 1889, como agravamento da doença mental e após seguidas internações, van Gogh foi se tratar com o Dr. Paul-Ferdinand Gachet, médico com ex- periência em medicina interna e doenças mentais, amigo dos artistas Gustave Courbet, Victor Hugo, Paul Cézanne, Pissarro e Monet, e que já tinha tra- tado de Charles Méryon, Auguste Renoir e Édouard Manet. Gachet, formado na Universidade de Paris, onde apresentou o Estudo sobre a Melancolia , era também pintor amador e amante das artes. No curto período em que van Gogh esteve sob os cuidados de Gachet, ele produziu cerca de 70 qua- dros, sendo alguns destes os mais destacados de sua obra. Em carta ao irmão e protetor Theo, Vincent descreveu o Dr. Gachet como “um curioso, um viúvo, um excêntrico. Encontrei nele um amigo completo, mesmo algo como um novo irmão, pois somos tão parecidos, fisicamente e moralmente”. Um dos frutos dessa amizade foi o quadro O Retrato do Dr. Ga- chet , o mais conhecido e valioso do pintor; leiloado, em 1990, por 85 milhões de dólares. Existem duas versões deste quadro, nas quais Gachet encontra-se sentado com a cabeça apoiada no braço direito, ten- do em destaque, sobre a mesa, a planta dedaleira, de onde se extrai a Digi- talis , medicamento tônico do coração receitado ao artista. Segundo o próprio autor, o retrato revela o médico “cansado, com a expressão quebrada pelo coração de nosso tempo”. O transtornado artista se matou aos 37 anos com um tiro no peito, em um período de extrema de- pressão, apenas 10 sema- nas após o início do seu tratamento com Gachet. Van Gogh, apesar de nun- ca ter seguido fielmente os conselhos médicos, como parar de fumar e beber, sempre demonstrou amiza- de e identificação por seu derradeiro médico. Mesmo que, à época, o médico tenha recebido severas crí- ticas pelo trágico desfecho, o relacionamento entre Gachet e van Gogh, imortalizado pelo célebre e va- lioso retrato, representa um marco do tratamento hu- manizado e da boa relação médico-paciente, na qual nem sempre a cura é o objetivo único, mas o apoio, a compaixão e a dignidade do enfermo. “Eu não posso fazer nada se os meus quadros não se vendem; chegará um dia, no entanto, em que se verá que eles valem mais do que o preço que nos custam as cores e a minha vida, em verdade muito pobre”, profetizou o gênio incompreendido. Palavra do Presidente MARCUS VINÍCIUS BOLÍVAR MALACHIAS Foto: Pedro Vilela 3

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