Em defesa da boa saúde
Emílio César Zilli*
A Medicina Baseada em Evidências foi indubitavelmente uma das
maiores conquistas da epidemiologia médica no século passado. Foi através de
seus postulados e observações estatísticas que se estruturou como ciência e o
empirismo e o “achismo” deram lugar à técnica, à estratificação e à verdadeira
arte da cura. Graças a ela, a medicina deixou de ser exercida por curandeiros e
práticos, libertando-se da áurea religiosa e da rentável prática dos charlatães.
Isto foi possível a partir das orientações determinadas por consensos de
especialistas, patrocinados pelas sociedades de especialidade, apoiados pelas
comunidades acadêmicas e pelas unidades hospitalares de referência no
atendimento médico. Assim foram criados os protocolos de atendimento.
Importante ressaltar que estes protocolos são alvo de constantes críticas e
revisões, sendo comum suas reedições anuais, sempre que alguma descoberta mais
recente naquele capítulo específico se evidencie, como um exame mais acurado ou
um tratamento mais eficiente . São estes protocolos, por exemplo, que viabilizam
um tratamento mais rápido e eficaz como primeiro atendimento, assim como
garantem ao paciente a realização de um exame mais moderno e sofisticado,
ocasionalmente negado pelo seguro saúde. Por outro lado, são os mesmos
protocolos que devem nortear a autorização de tratamentos e exames
complementares pelas seguradoras.
Entretanto, quem aplica estes protocolos? Semana passada, um paciente meu, velho
amigo, me procurou por ter acordado com tonteiras. Após a avaliação, constatei
que se tratava de uma doença que nós, médicos, diagnosticamos como Síndrome de
Ménière e que os leigos comumente tratam como labirintite.
Após orientação específica e recomendação de repouso, o paciente, já mais
tranqüilo, pois a sua primeira preocupação fora a de “estar tendo um derrame”,
ignorou a recomendação de repouso e piorou, muito. Piorou a ponto de ser
encaminhado posteriormente por outro colega (do seu trabalho) a uma clínica de
urgência. Aí começou a sua via-crucis, pois sendo de convênio e não tendo um
médico assistente especificamente responsável, foi transitado por três unidades
hospitalares, sendo que em duas, internado em UTIs, submetido a quatro
radiografias de tórax, dois ecocardiogramas, algumas dezenas de exames
laboratoriais, uma tomografia computatorizada cerebral, com direito a um
emocionante “rallie”(segundo o próprio) pela madrugada do Rio de janeiro, em
ambulância de emergência . Trinta horas após teve alta! Diagnóstico: Síndrome de
Ménière! E isto em nome de quê? Dos protocolos!
É claro que esta história não é nova. Recentemente, uma pessoa de minha família,
que usa uma sonda urinária, foi encaminhada pelo seu médico a uma unidade
hospitalar para uma simples troca do artefato, que se encontrava vencido no
tempo de utilidade. Após cinco horas em um serviço de emergência, com direito à
triagem por um clínico, exames laboratoriais e análise por especialista, teve
sua solicitação médica negada por um colega que argumentou que “só poderia
trocar a sonda em caso de obstrução da mesma e, como não era o caso, o paciente
deveria procurar o seu urologista, pois assim estabelecia o protocolo”.
Perfeito. Protocolarmente correto. Não se tratasse aquele momento da primeira
semana do ano e de um domingo à noite quando, infelizmente, o urologista não foi
localizado.
Retorno à pergunta: quem aplica os protocolos? Quem é o responsável pelo êxito
ou fracasso de sua aplicação? Necessariamente, um médico. Mas, quem é este
médico? Geralmente um jovem cheio de sonhos, recém-saído da residência médica
(ou ainda nela) após um absurdo concurso, como pós-graduado oriundo na maioria
das vezes de uma faculdade que deveria tê-lo formado, mas que apenas o informou,
transferindo para a residência médica um treinamento que deveria ter sido
realizado na graduação.
O pior é que, de cada quatro graduandos, apenas um consegue atualmente este
treinamento em uma unidade de referência, capacitada a complementar seu ensino e
comprometida com a formação. Por quê? Por ser permitido funcionar faculdades de
medicina que não possuem hospitais próprios para treinamento. E que, após
graduarem seus estudantes, apostam na omissão irresponsável de um governo à sua
formação, incluindo aí a análise e aplicação dos protocolos. Sem falar nas
condições de trabalho que, na grande maioria dos hospitais públicos e em alguns
privados, beira o descaso e são desumanas. Independentemente da demagogia dos
discursos oficiais.
É este profissional quem realiza o nosso atendimento médico. Sobre ele pesa a
responsabilidade de interpretar e aplicar corretamente os protocolos tão
cientificamente desenvolvidos. Poderíamos gastar horas analisando
responsabilidades, culpas, enfim, toda esta indecência na qual converteram
criminosamente a assistência médica em nosso país, mas seria repetitivo.
Um médico lida com vidas. Será que alguém pode proteger este bem maior, sem
estar plenamente qualificado, socialmente amparado e, no mínimo, economicamente
recompensado?
Seguramente não será permitindo a criação de faculdades de medicina para atender
interesses políticos e eleitoreiros. Claramente não será extinguindo cada vez
mais a capacidade de ensino e treinamento das entidades de referência, através
de uma política míope e partidária. E certamente, não será aviltando cada vez
mais a profissão, pagando um salário equivalente a apenas R$ 1.600,00, como nos
pagam na maioria dos estados brasileiros todos os políticos de plantão, há mais
de vinte anos.
O atendimento médico de emergência no Rio, não apenas na assistência pública,
mas também no sistema de saúde suplementar, já apresenta sinais claros de
esgotamento. Não são poucas as vezes que médicos e pacientes têm de perambular
por várias unidades em busca de uma vaga para internação. E isto com todos os
direitos (?) do paciente assegurados (?), seja por seu contrato ou pela
Constituição.
De nada adiantarão os avanços e conhecimentos da medicina tão arduamente
alcançados, se não investirmos na formação e a capacitação do profissional de
saúde. Será através desta capacitação que o médico poderá exercer sua crítica e
arbítrio na aplicação dos protocolos.
Não será liberando acordos políticos, no mínimo exóticos, para reconhecer o
diploma de médicos formados em faculdades cubanas, por exemplo, que estaremos
melhorando a qualidade do nosso atendimento. Alegam que estes médicos estarão
atuando no interior, e com populações carentes. .Como se pudéssemos dividir a
medicina e o seu atendimento por classes sociais.
É hora de todos nós, da sociedade, mesmo desorganizada, deixar de lado a
omissão, de assumir a cidadania e perguntar: quanto vale a minha vida? Quanto
vale a interpretação e a aplicação de um protocolo? Ou como perguntava
recentemente o Conselho Regional de Medicina do Rio: quanto vale um médico?, R$
1.600,00? Tenho a certeza de que não.
Só para constar: fiz a conta de quanto custou o meu paciente ao plano de saúde:
R$ 8.700,00. Se este plano valorizasse, dignificasse e respeitasse o trabalho do
médico, remunerando de forma justa e honesta sua consulta, todos teriam melhor
retorno financeiro e social. Principalmente, o maior interessado e o mais
importante ator deste drama: o paciente.
*Mestre em Cardiologia e Diretor de Qualidade Assistencial da Sociedade
Brasileira de Cardiologia.
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