Jornal SBC 195 | outubro 2018

Para expor realisticamente esse tema tão polêmico, que emerge do seu âmago, a realidade cruel, o misticismo, um pouco de folclore, sem excluir, evidentemente, os ar- roubos do romântico e do sentimental, iniciamos com as seguintes indagações: muda- ram os médicos? Mudaram as famílias? Mudaram as rela- ções entre as pessoas? Como responder: magia, aura, carisma – tudo se mistura e pouco se define quando se trata de abordar a imagem e a própria dinâmica da re- lação – médico/paciente/família de alguns anos atrás. E, assim, acrescentamos uma palavra por demais importante dentro deste contexto: o sau- dosismo inerente a esta policromia, que designo como feiticeira. Era como se, nas mãos daquele em quem se buscava a aura para um mal, residisse a capacidade de resolver todos os outros. A própria definição do “mal” parece, aos olhos da atualidade, tão volátil quanto à relação em questão. Pois se antes um leve mal-estar levava aos consultórios, também as inquietações dos pacientes, esperando em troca a solução para tudo, hoje esta imagem parece per- der a conotação quase que divina, enquanto revestida de fatores como onipresença e onisciência, e o doente passa a exigir de seus médicos uma conduta imediatista, tal e qual o ritmo dos dias atuais. Justificativas há. As especialidades afirmam-se a cada ano que passa e, assim, o paciente pode, teoricamente, contar com um médico para cada parte do corpo, por as- sim dizer. Além disso, a corrida para a sobrevivência não mais permite despender-se muito tempo com um só pa- ciente discorrendo, por exemplo, sobre um filho que não se alimenta a contento; pode-se recorrer ao pediatra, ao psicólogo... além disso, tempo é dinheiro. O que mudou? Mudou-se, por quê? Uma dúvida que re- fletimos em um primoroso con- ceito “ao médico entrega-se a vida... e a Deus, entrega-se a alma”, diz a primorosa assertiva. Porém, como entregar uma sem entregar a outra? Saúde e doença, binômio que interfere diretamente na maneira de as pessoas se re- lacionarem com um mundo e consigo próprias, assim como as relações afetivas e emocionais podem interferir no estado de saúde e “adoe- cer” ou “curar” alguém. Por isso falar de doen- ça ou saúde implica necessariamente de si, da casa, do trabalho, do ambiente e das pessoas que nos rodeiam. O convívio era estreito entre médicos e pacientes, de tal forma que problemas pessoais, familiares e até mesmo conjugais eram confiados aos primeiros, que, por tudo isso, participavam de toda economia e de toda a dinâmi- ca de um núcleo familiar que não seu. Enfim, mudaram os médicos, mudaram as famílias e mudaram as relações entre as pessoas. Um ser vestido de branco, um semideus, que aliava a austeridade e a erudição a uma bondade sublime, sem excluir jamais a honestidade e o desprovimento de interesses financei- ros, esta figura magnânima já não existe mais, vitima- da e encurralada por uma sociedade cruel e desumana dos dias atuais, juntando-se ao crescimento demográfico das populações, uma economia instável e um sistema de saúde falido, obrigando a superespecialização e a pro- liferação da tecnologia sofisticada, dirimindo cada vez mais o contato com o paciente − uma relação que vem Poder médico: a queda do mito? Crônicas do Coração por Fernando Lianza Dias Crônicas do Coração p r ernando Lia za ias Fernando Lianza Dias é especialista em Cardiologia pela SBC/AMB, médico Preceptor de Cardiologia, Chefe do Serviço de Risco Operatório do Hospital Universitário Lauro Wanderley da UFPB, Diretor Científico da Cardioclin e Coordenador do Núcleo de Prevenção das Doenças Cardiovasculares no Hospital Universitário Lauro Wanderley da Universidade Federal Da Paraíba (UFPB). 22

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