Jornal SBC 132 | Julho 2013 - page 15

Jornal SBC 132 | Julho 2013
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Como
cidadão,
fiquei
deslumbrado com o clamor
que varre a nação. Como
médico, e ligado à saúde,
mergulhei em esperanças.
Contudo, com a mesma
velocidade
que
esse
sentimento
aflorou,
fui
tomado por uma angústia
incontida ao observar as
manifestações oficiais.
Anunciou-se solenemente que seriam importados
milhares de médicos estrangeiros e injetados R$ 7
bilhões em hospitais e unidades de saúde. Também
se propôs a troca de R$ 4,8 bilhões de dívidas dos
hospitais filantrópicos por atendimento médico e foi
anunciada a criação de 11.400 vagas de graduação
em escolas médicas.
Perplexo, gostaria de dizer que essas propostas são
tão surrealistas que não podem ter sido idealizadas
por autoridades sérias, mas sim por marqueteiros
afeitos à empulhação. Piores do que os depredadores
soltos pelas ruas, já que destroem vidas humanas.
A medicina exercida condignamente pressupõe
equipes qualificadas, não apenas com médicos, mas
também com enfermeiros, psicólogos e assistentes
sociais. Exige instalações minimamente equipadas,
para permitir diagnósticos e tratamentos mais
simples.
Necessita do apoio de farmácias, capazes de prover
sem ônus para os necessitados as medicações
Depredando a saúde da nação
DEFESA PROFISSIONAL
José Xavier de Melo Filho
Diretor de Qualidade
Assistencial da SBC
essenciais. Requer processos de higiene, assepsia
e certo conforto, para dar segurança e respeitar a
dignidade humana dos pacientes.
O que farão os médicos estrangeiros nas áreas remotas
do Brasil apenas com termômetros e estetoscópios
nas mãos? Irão receitar analgésicos, antidiarreicos
e remédios para tosse, o que poderia ser mais bem
executado por qualquer prático de farmácia, também
afeito às doenças regionais. Médicos que nos casos
mais delicados nem atestado de óbito poderão
assinar, pois não conseguirão identificar a causa da
infelicidade.
Pior ainda, como esses médicos conseguirão
atuar limitados pela dificuldade de comunicação,
desqualificados para tratar doenças já erradicadas
em países sérios, frustrados por viverem em regiões
destituídas de condições mais dignas de existência
para eles próprios, suas mulheres e seus filhos?
Certamente tratarão de migrar para centros mais
prósperos, abandonando aqueles que nunca
conseguirão expressar a desilusão.
Não custa lembrar que muitos países desenvolvidos
aceitammédicos estrangeiros, contudo nenhumdeles
atua sem ser aprovado em exames extremamente
rigorosos, que atestam a elevada competência
profissional.
Igualmente falaciosa é a proposta de incrementar os
recursos para a saúde. Num país como o Brasil, que
gasta apenas 8,7% do seu orçamento em saúde –
muito menos que a Argentina (20,4%) e a Colômbia
(18,2%) –, somente mal intencionados poderão
acreditar que um aporte de recursos de 0,7% corrigirá
a indecência nacional.
Também enganadora é a ideia de se recorrer às
instituições filantrópicas. Em situação falimentar,
deixam de pagar tributos porque não recebem do
governo federal os valores justos pelo trabalho. Pelo
mesmo motivo, serão incapazes de aumentar o já
precário atendimento.
Quanto à criação de novas vagas para alunos de
medicina, nada mais irrealista. Para acomodar os
números apresentados, o governo teria que criar
entre 120 e 150 escolas médicas. Com que recursos?
Com que professores? Com que hospitais?
Presidente, termino pedindo desculpas pela minha
insolência. Você, que é digna e tem história, não
pode tergiversar perante o clamor de tantos filhos da
nação. Faça ouvidos moucos ao embuste e combata
de forma sincera os malfeitos.
Assuma, de forma sincera e não dissimulada, a
determinação política de priorizar os recursos para as
áreas sociais. Para não ser tomada por angústia infinita
ao cruzar com a multidão, entoando com indignação
o canto de Chico Buarque: "Você que inventou
a tristeza/ Ora, tenha a fineza/ De desinventar/
Você vai pagar e é dobrado/ Cada lágrima rolada/
Nesse meu penar".
MIGUEL SROUGI, Faculdade de Medicina da USP.
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