Jornal SBC 132 | Julho 2013 - page 14

Jornal SBC 132 | Julho 2013
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70 ANOS
Por que “fundador” entre aspas? Porque eu estava na
casa do Dr. Dante Pazzanese em abril de 1943, quando...
vou explicar.
Meus primeiros passos rumo à cardiologia, eu os dei
quando tinha três anos de idade. Demãos dadas commeu
pai, Dr. Calil Porto, ele, sim, um dos fundadores da SBC, eu
o acompanhava, nos finais de tarde, em suas visitas aos
doentes mais idosos ou mais graves que não podiam ir
ao consultório. Fazia questão de carregar sua maleta de
médico, aquela antiga, bem maior que o modelo atual,
então no formato de valise, com espaço suficiente para o
termômetro, o aparelho de pressão (de mercúrio), vários
estojos de aço inoxidável com seringas de vidro e agulhas,
devidamente esterilizadas, bolas de algodão embebidas
emálcool, garrote de borracha para injeções endovenosas,
abaixador de língua, um estojo de capa preta com o
otoscópio, o rinoscópio e o oftalmoscópio, bloco de
receituário e as ampolas dos medicamentos que seriam
aplicados; enfim, tudo que era necessário para examinar
e medicar os doentes em suas próprias casas. (É provável
– disso não tenho certeza (!) – que alguns pacientes
eram cardíacos, pois, a doença de Chagas era endêmica
naquela região).
Mesmo exercendo a medicina em um arraial, às margens
do Rio Dourados, onde meu pai tinha nascido, em 1908,
ele era um médico atualizado; sem dúvida, fruto de sua
convivência com os grandes mestres da Faculdade de
Medicina da Praia Vermelha onde se formara em 1932
(Havia sido“interno”da enfermaria do Prof. Carlos Chagas).
Em meados de 1942, meu pai pleiteou e conseguiu
inscrever-seno III CursodeCardiologiaque seriaministrado
no Serviço de Cardiologia do Hospital Municipal de São
Paulo, nos três primeiros meses do ano seguinte, sob a
coordenação do Dr. Dante Pazzanese.
Em janeiro de 1943 lá fomos nós – meu pai, minha mãe,
minha irmã Lenise e eu. Aqueles momentos deminha vida
permanecem tão nitidamente vivos em minha memória
que revejo o dia da partida, em nosso automóvel, um Ford
sedã, ano 1938, cor cinza, a gasogênio (sabem o que é
isso?), pois estávamos em plena Segunda Guerra Mundial
e a gasolina era rigorosamente racionada. De Abadia
dos Dourados, na divisa de Minas Gerais com o estado
de Goiás, a Araguari, era menos de 100 quilômetros, a
serem percorridos em uma péssima estrada de terra. Por
ser época de chuva havia tanto atoleiro que em muitos
trechos os pneus tinham de ser envolvidos com correntes,
o que reduzia drasticamente a velocidade do automóvel,
que era ultrapassado até por um carro de bois. Foram
dois dias de viagem, sempre saindo de madrugada para
vencer metade do caminho antes do anoitecer. A partir de
Araguari, já uma próspera cidade, faríamos minha primeira
e inesquecível viagem de trem de ferro, inicialmente pela
Mogiana, depois de Ribeirão Preto, pela
Paulista Railwail,
a melhor estrada de ferro do Brasil – bitola larga, vagões
luxuosos, atapetados, cortinas brancas nas amplas janelas,
garçons uniformizados, vendendo maçãs, peras, uvas,
chocolates, cigarros e até chicletes, algo desconhecido
por mim, que foi motivo de enérgicas recomendações de
minha mãe:“Não pode engolir”, dizia ela.
Na manhã seguinte à nossa chegada, o curso teve início.
Meu pai passava o dia todo no Hospital Municipal,
convivendo com os primeiros mestres da cardiologia
brasileira.
Hospedados no Hotel Moraes, no Largo do Paissandu,
tínhamos o dia todo para passear. Foram três meses
preciosos para aquele menino que nunca tinha visto
telefone, elevador, cinema, bonde elétrico, lojas com
vitrines luxuosas, luminosos piscando no topo dos prédios,
anunciando cerveja, chocolate, cigarros, canetas que
aspiravam tinta... Ah! como os achei maravilhosos!
Bem! É hora de explicar a razão de ser deste depoimento.
No final do curso, havia o tradicional jantar de
confraternização na casa do Dr. Dante Pazzanese, quando
ele recebia os colegas do Serviço de Cardiologia e seus
alunos. De pé, no jardim de sua bela casa, trajando um
impecável terno de linho branco, com um sorriso afável
e a fisionomia feliz, com palavras gentis para cada um,
Dr. Pazzanese externava sua alegria de ver mais uma turma
de “cardiologistas” – a terceira – preparados por ele e sua
equipe (Uma curiosidade: meu pai era o único médico
de Minas Gerais naquela turma; posteriormente, o Dr.
Caio Benjamim Dias, de Belo Horizonte, foi convidado a
participar como fundador da SBC).
Agora preciso justificar melhor por que me considero
“fundador”, entre aspas, da Sociedade Brasileira de
Cardiologia. As famílias dos professores e dos alunos lá
estavam. Como era tradição, as mulheres, todas muito
chiques, algumas de chapéu, ficavam em uma sala, e os
homens, devidamente enfarpelados, em outra! Sentado
no braço de uma poltrona, ao lado de meu pai, eu ouvia
atentamente as conversas. ODr. Dante Pazzanese circulava
entre seus convidados, dando atenção a cada um,
estimulando a conversa que naquele dia girava em torno
da criação de uma Sociedade de Cardiologia. Setenta anos
passados, mas lembro-me como se fosse ontem, comdoce
emoção, quando o Dr. Pazzanese, ao se aproximar de meu
pai, virou-se para mim e perguntou: “
Você também vai ser
cardiologista?
”. Respondi, semtitubear:“
Sim!
). Em1959, tive
a satisfação de reencontrar o Dr. Dante Pazzanese, na aula
inaugural do curso realizado naquele ano, e dizer-lhe que
ali estava confirmando a resposta que tinha lhe dado 16
anos atrás. A roda da vida nos tinha colocado, outra vez,
frente a frente.
Por isso, sinto-me feliz em poder dizer que me considero
“fundador”da Sociedade Brasileira de Cardiologia, embora
não tenha assinado a ata que consagrou os nomes
daqueles que deram os primeiros passos nessa vitoriosa
jornada que teve início naquela noite, na casa do Dr.
Dante Pazzanese, em 1943, e que se transformou em uma
maiores sociedades científicas domundo.
Entre parênteses: devo ser o único “fundador” ainda
vivo, pois, fazendo as contas, calculo que os mais jovens
naquele jantar deviam ter, nomínimo, trinta anos de idade.
Portanto, estariam, hoje, com100 anos. Eu tinha nove anos!
70 anos de fundação da SBC –
Depoimento de um“fundador”
Celmo Celeno Porto
Professor Emérito da
Faculdade de Medicina da UFG
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