Palavra do Presidente

  • Van Gogh, Dr. Gachet e a Digitalis

    Vincent van Gogh é uma das personalidades mais intrigantes da história da arte. Nascido em 1853, na Holanda, foi comerciante e pastor, mas encontrou na pintura sua verdadeira vocação, apesar de, em vida, só ter conseguido vender um único quadro, O Vinhedo Vermelho, em 1890, ano de sua morte. Conviveu e recebeu influências dos impressionistas Émile Bernard, Toulouse-Lautrec, Paul Signac, Edgar Degas e, especialmente, Paul Gauguin. Foi após uma violenta discussão com Gauguin, que, arrependido, cortou a própria orelha com uma navalha, dando início a uma série de internações em hospitais e sanatórios. Centenas de médicos e pesquisadores estabeleceram diferentes diagnósticos médicos para van Gogh, como depressão, distúrbio bipolar, sífilis, epilepsia do lobo temporal, etilismo e intoxicações - por chumbo, Artemisia (contida no absinto) e Digitalis - substâncias que, supostamente, podem ter causado xantopsia, tendência para ver em amarelo, com possíveis influências em sua obra.

    Em 1889, como agravamento da doença mental e após seguidas internações, van Gogh foi se tratar com o Dr. Paul-Ferdinand Gachet, médico com experiência em medicina interna e doenças mentais, amigo dos artistas Gustave Courbet, Victor Hugo, Paul Cézanne, Pissarro e Monet, e que já tinha tratado de Charles Méryon, Auguste Renoir e Édouard Manet. Gachet, formado na Universidade de Paris, onde apresentou o Estudo sobre a Melancolia, era também pintor amador e amante das artes.

    No curto período em que van Gogh esteve sob os cuidados de Gachet, ele produziu cerca de 70 quadros, sendo alguns destes os mais destacados de sua obra. Em carta ao irmão e protetor Theo, Vincent descreveu o Dr. Gachet como “um curioso, um viúvo, um excêntrico. Encontrei nele um amigo completo, mesmo algo como um novo irmão, pois somos tão parecidos, fisicamente e moralmente”. Um dos frutos dessa amizade foi o quadro O Retrato do Dr. Gachet, o mais conhecido e valioso do pintor; leiloado, em 1990, por 85 milhões de dólares. Existem duas versões deste quadro, nas quais Gachet encontra-se sentado com a cabeça apoiada no braço direito, tendo em destaque, sobre a mesa, a planta dedaleira, de onde se extrai a Digitalis, medicamento tônico do coração receitado ao artista. Segundo o próprio autor, o retrato revela o médico “cansado, com a expressão quebrada pelo coração de nosso tempo”.

    O transtornado artista se matou aos 37 anos com um tiro no peito, em um período de extrema depressão, apenas 10 semanas após o início do seu tratamento com Gachet. Van Gogh, apesar de nunca ter seguido fielmente os conselhos médicos, como parar de fumar e beber, sempre demonstrou amizade e identificação por seu derradeiro médico. Mesmo que, à época, o médico tenha recebido severas crí- ticas pelo trágico desfecho, o relacionamento entre Gachet e van Gogh, imortalizado pelo célebre e valioso retrato, representa um marco do tratamento humanizado e da boa relação médico-paciente, na qual nem sempre a cura é o objetivo único, mas o apoio, a compaixão e a dignidade do enfermo.

    “Eu não posso fazer nada se os meus quadros não se vendem; chegará um dia, no entanto, em que se verá que eles valem mais do que o preço que nos custam as cores e a minha vida, em verdade muito pobre”, profetizou o gênio incompreendido.