Na edição passada, abordamos a responsabilidade civil
na legislação brasileira, que adota como regra geral o sistema
subjetivo, segundo o qual a responsabilização do autor do dano é
imprescindível à existência de sua conduta culposa. Alertamos que há
exceção a essa regra: nos casos em que o autor do dano pratica atividade
que, por sua própria natureza, põe em risco direitos alheios, sua
responsabilidade será objetiva – independente de culpa. Neste artigo,
analisaremos os principais aspectos das doutrinas subjetiva e objetiva que
fundamentam a responsabilização civil, contextualizando uma teoria
relativa ao tema conhecida como "perda de uma chance".
A regra geral da responsabilidade civil subjetiva é:
quem culposamente causa dano a outro é obrigado à reparação. Decorre
daí a existência de três elementos essenciais à eclosão da
responsabilidade subjetiva: culpa, dano e nexo de causalidade entre um e
outro.
É responsabilizado por um dano que causou, a pessoa
que agiu com intenção de provocar o prejuízo (dolo) ou atuou com
negligência, imperícia ou imprudência (culpa em sentido estrito). A
existência de dano, por sua vez, é pressuposto da responsabilização. A
fim de exigir de alguém uma reparação pecuniária qualquer, é
indispensável a efetiva existência de prejuízo à vítima, seja
material ou exclusivamente moral. Para concretizar a responsabilidade, é
necessário estabelecer uma ligação entre a conduta culposa e o
prejuízo sofrido, de modo que se possa afirmar que o dano ocorreu em
virtude daquela conduta e não de outra qualquer.
A teoria subjetivista mostrou-se inadequada à cobertura de todos os
prejuízos que reclamam reparação, na medida que, diferente do que
normalmente ocorre com a comprovação do dano, a prova da culpa e do nexo
de causalidade pode tornar-se bastante problemática, deixando a vítima
sem indenização.
Dessa constatação, e no intuito de abranger tantos
casos de dano possíveis, surgiram as primeiras teorias objetivistas para
a responsabilidade civil. Tais teorias procuram mitigar a culpa e o nexo
de causalidade como elementos indispensáveis à responsabilização,
possibilitando a efetiva reparação do dano.
Presume-se a existência de culpa na conduta do autor do dano, restando
à vítima apenas a necessidade de comprovação do nexo de causalidade
entre aquela conduta e o dano sofrido. Há uma inversão do ônus da
prova, cabendo agora ao autor do dano comprovar que não agiu
culposamente, de maneira a eliminar a presunção de culpa que milita em
seu desfavor. Da evolução dessas idéias surgiu a noção de
responsabilidade sem culpa. Aqui já não há qualquer presunção, e
alguém é responsabilizado simplesmente porque sua atividade põe em
risco direitos alheios. Aquele que põe em funcionamento uma atividade
qualquer, responde pelos danos que essa possa causar a terceiros,
independente da existência de conduta culposa.
O médico deve
ter cautela para evitar a culpa e, logo, a responsabilidade civil
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Foi nessas teorias objetivistas que surgiu, a partir da
década de 60, especialmente na França, a chamada "teoria da perda
de uma chance" (perte d’une chance), que aplicada à atividade
médica, ficou conhecida como "teoria da perda de uma chance de cura
ou de sobrevivência". A idéia central é explicitar inconvenientes
existentes na comprovação dos elementos formadores da responsabilidade
subjetiva (culpa, dano e nexo de causalidade), enfatizando o resultado
lesivo.
Nesse sentido, nos casos em que é difícil a
comprovação do nexo de causalidade entre o ato ou omissão culposos do
médico e o dano experimentado pelo paciente, admite-se que o elemento
prejudicial que determina a indenização é a perda de uma chance de
resultado favorável no tratamento.
Exemplo clássico de aplicação é o do médico que,
conduzindo-se negligentemente, falta ao plantão, disso decorrendo a morte
do paciente em estado grave que acabara de dar entrada no hospital. No
entanto, comprova-se posteriormente que o quadro do paciente era
irreversível e que mesmo com a presença do médico o óbito não seria
evitado. Nesse caso, temos o dano (morte), a culpa (ausência no
plantão), mas não o nexo causal (pois não foi a conduta culposa que
ocasionou a morte), de modo que, em princípio, não se completariam os
requisitos da responsabilização. A "perda de uma chance de cura ou
sobrevivência" vem para responsabilizar o médico mesmo nessas
situações.
Nossos Tribunais já aplicaram a teoria da perda de uma
chance para responsabilizar um hospital por ato culposo de seu médico
(imprudência) que, ao diagnosticar pneumonia dupla, recomendou ao
paciente tratamento domiciliar ao invés de interná-lo e o doente morreu.
Entendeu-se que o médico privou o paciente da chance de se submeter a
tratamento hospitalar, que talvez o teria salvado.
Nos casos de aplicação dessa teoria, o médico,
embora agindo com culpa, não é, a rigor, o causador do dano. A relação
de causalidade que se estabelece entre a culpa do médico e o dano do
paciente não é, portanto, natural, mas sim estritamente jurídica.
Com essa mitigação do nexo causal, a culpa deve ser evitada pelo
médico, como única forma segura de afastar a responsabilização civil.
Assim, aumenta a importância do dever de diligência do médico, que deve
servir-se adequadamente de todo o arsenal técnico, para bem diagnosticar
seu paciente. Deve analisar todas as possíveis terapêuticas aplicáveis
e escolher, prudentemente, aquela que traga maiores chances de resultado
favorável, dando ao paciente todas as possibilidades de cura e
sobrevivência
Paulo Roberto Andrade
e Ricardo Zamariola Junior
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