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Marco Aurélio Dia da Silva:
um conspirador

Foi criada a medalha de humanização
Marco Aurélio Dias da Silva e entregue, em novembro,
ao professor Fernando Figueira "in memoriam", no II Fórum Brasileiro de Relação Médico/Paciente, em Recife.

São paradoxalmente distintos os  sentimentos que me invadem ao tentar escrever estas linhas em memória de Marco Aurélio Dias da Silva, amigo, camarada, colega, companheiro de caminhadas e cúmplice de sonhos de uma humanidade melhor e mais feliz. Por um lado, é imensa a tristeza, persistente a saudade, infinito o vazio deixado por sua partida. Por outro, são os mesmos os adjetivos com que qualifico a satisfação de prestar-lhe esta homenagem, a felicidade e o privilégio de haver desfrutado de sua amizade, que conservo como preciosa herança que fazia parte da esfera da essência e não da área antagônica das aparências, e de ter, junto com ele, conspirado em favor de uma utopia em cuja concretização sempre acreditamos: a de uma Medicina humanamente justa, uma ciência-arte do verbo ser e não do apego desesperado ao ter.

Participamos de várias reuniões cons­piratórias nesse sentido, sem dar tréguas à luta que, não raro, parece perdida pela união entre tecnologia e humanismo, pelo dever a que todo médico conscientemente deveria obrigar-se de, diante de qualquer paciente, levar em conta a conexão mente-corpo, uma vez que a desatenção ao domínio psicológico na prática médica fratura a Medicina em seu âmago. Juntos sonhávamos também com uma Medicina trans­disciplinar, em que o conhecimento de uma área fecundasse o conhecimento de outra e vice-versa, num único intuito: o de melhor servir à saúde e à felicidade das pessoas.

Foi no cerne desse mundo friamente tecnológico que nossa amizade - essa complexa arte - nasceu e se consolidou, numa sadia cumplicidade em busca de ideais aparentemente inalcançáveis, o que me traz à lembrança as palavras de Milan Kundera quando afirma que “toda amizade é uma aliança na adversidade”. Essa aliança nos estimulou a não esmorecer no caminho que, acredito - como Marco Aurélio acreditava -, conduzirá a Medicina, algum dia, a um exercício em que seriedade e humanidade não sejam atitudes incompatíveis e muito menos irreconciliáveis.

Não me detenho aqui na cronologia da vida ou nas qualificações do médico Marco Aurélio Dias da Silva (1949-2001), recifense, cardiologista, especialista em Saúde Pública, professor, pesquisador, escritor, que partiu cedo demais, aos 52 anos. Muitos desses dados são conhecidos de boa parte do público, assim como o são seus livros, o último dos quais, “Todo poder às mulheres: esperança de equilíbrio para o mundo” (Editora Best-Seller) - foi lançado no Recife, em 29 de novembro de 2000.

Gostaria de referir-me, de modo mais especifico, ao Marco Aurélio humanista, para quem a titulação, conforme concordamos em tantas das nossas conversas, não qualifica ninguém como pessoa ou como uma entidade superior, como supõem os PhDeuses, sempre intoxicados de tantas certezas, que acabam se tornando grandes enganos! Pobres dos que confundem conhecimento com sabedoria, sem (querer) saber que a sabedoria nasce menos da inteligência e muito mais do coração, o qual, segundo os sábios da velha China, é mais criativo do que a mente, na medida em que a realidade é bem mais complexa e, sobretudo, bem mais humana do que as frias estatísticas,

Quero lembrar o ser humano exemplar, para quem todos devem procurar alcançar um patamar de crescimento, ou ao menos dele se aproximar, em que o “genuíno prazer” seja o “do amor que transmitem às outras pessoas”. Era com esse homem que, em nossas últimas conversas, troquei idéias, chegando ambos à tranqüila conclusão de que, no meio-dia da existência, éramos menos amantes do poder e mais amantes da vida. Concordamos, também, que devemos assumir nossas fraquezas com todas as forças, embora correndo o (alto) risco de enfrentar os que confundem simplicidade com superficialidade. São muitos os que o fazem, sobretudo neste mundo injusto, no qual, segundo Bertolt Brecht, “ser bom é ser ingênuo”, o que me faz lembrar a conclusão a que chegou alguém, cujo nome não me ocorre, segundo a qual “Deus deve gostar muito dos medíocres. Fez tantos deles!...” E são os medíocres os que se regozijam com o sucesso do modelo neoliberal, cujo critério consiste em medir cada um menos pelo faz e mais pelo quanto aparece.

Aparentemente, perdemos um bravo conspirador da boa causa. Prefiro, contudo, pensar de outro modo, pois estou certo de que, mesmo havendo-se encantado, a lembrança de Marco Aurélio fica como testemunho vivo de sua presença. E ser lembrado é a única maneira de alcançar a imortalidade, porque a memória traz de volta a vida. Por isso, apesar da dor e de que, com sua morte, eu me sinta menos vivo e mais mortal, conservo a tranqüilidade de saber que não desperdicei as horas dedicadas à convivência com ele. Aliás, a propósito do tempo, para nós estava muito claro que, diferentemente do tempo cronológico, igual para todos, o tempo existencial é pessoal e singular. Certamente, por isso, ele, que tão bem soube usar o seu tempo singular para cultivar o amor entre as pessoas, dizia que “o grande drama da vida não é morrer; é não viver. Morrer sem ter, de fato, vivido. E não ter vivido significa, em última análise, não ter amado (...) (porque) quem de fato ama, não adoece e morre, enfim, de vida vivida”.

De certo modo, apesar de ter morrido um pouco, como ocorre quando se perde uma pessoa querida, estou em paz. E isso, em grande parte, se deve a Marco Aurélio Dias da Silva, que soube exercer de modo irretocável sua vocação de amigo: a de trazer a paz.

 

Wilson de Oliveira Jr.

Professor adjunto da UPE




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